Serra Grande
Memórias de um lugar antes do turismo
Serra Grande, distrito de Uruçuca, nasceu como um singelo povoado moldado pela força das marés e pelo aroma da mata. Cresceu e ganhou vida própria, parte do distrito, marcada pela generosidade de Pedro Gomes, que doou suas terras e deu nome à praça central. Ali, agricultores construíram suas casas, cultivaram sonhos e transformaram a paisagem na acolhedora Vila de Serra Grande, onde simplicidade e beleza se encontram.
Cercada pela mata atlântica e áreas chamadas de ‘capoeira’, a comunidade vivia do trabalho rural. A eletricidade chegava até às 22h; depois, só a luz dos candeeiros e o som dos rádios a pilha. Carros eram raros, casas escassas, e o sustento vinha da roça, da caça e da pesca: capinar, colher mandioca, produzir farinha e trabalhar na carvoaria eram parte da rotina.
Morador de Serra Grande há 50 anos, Joel Lucídio Soares, 75, natural de Belmonte e pai de dez filhos, lembra como a Represa era diferente: “Só tinha três casas e uma rua estreita. Depois das quatro da tarde dava medo passar por causa das onças e cobras pico-de-jaca”. Ele recorda também os tempos de trabalho na floresta: “Tirava piaçava, caçava e vivia do que pegava. Depois que a caça foi proibida, os bichos voltaram”, diz sorrindo.
Conhecido como ‘Joelzinho do Porco’ por vender carne suína e ter sido dono de um bar, ele relembra os festejos de São Pedro: “A igreja tinha muitos batizados e casamentos. O pessoal bebia, comprava carne de porco, comia e ia embora. Sempre tinha samba e forró. Quando acabava, eu fechava e dormia. Era tudo junto: bar e casa, por isso fechei”.
O avanço da luz elétrica ainda era um sonho. “Usava lamparina. No Bairro Novo vi a primeira casa sendo construída. Na época, a mata fechava a estrada. Hoje está tudo cortado por estradas e pistas. Antigamente era só mata”, lembra Joel. Para quem viveu Serra Grande quando tudo era silêncio, trilhas e escuridão, as mudanças parecem um salto no tempo.
Entre os protagonistas dessa história está José Vicente de Souza, 70 anos, o ‘Prechete’, que vive em Serra Grande há 64 anos. “Trabalhei de servente de pedreiro, serrador, bitoleiro, plantador de mandioca e fazedor de farinha”, recorda. Aos 15 anos, ajudava o pai na carvoaria: “A gente ia para o mato, toreava a madeira e botava num forno. Em dois ou três dias, ficava pronto; se passasse do ponto, perdia todo o carvão”.
Na juventude, Zé deixou o povoado. “Fui para Ipiaú. Trabalhei cortando, podando e roçando numa fazenda de cacau. Lá peguei a mulher, mas casei aqui no padre”, conta. Pai de cinco filhos, mantém a rotina de acordar cedo e ouvir rádio. Hoje aposentado, dedica-se à pesca quando não faz algum serviço eventual. “Gosto de ir à praia de Ângelo, que é a do cemitério na Vila Badu. Lá pego xareú, pampo, barbudo, robalo, bagre. Outro dia, peguei um peixe de três quilos no anzol”, lembra, e recorda que, antigamente, todos compravam na mercearia de Pedro Gomes: “Era a única que existia”.
Serra Grande, povo diverso – O paulistano Bruno de Carvalho Alves, 65 anos, empresário, economista e fundador da Revista Fluir, relembra suas viagens pelo litoral da Bahia na década de 1970. “No verão de 1978 foi meu primeiro encontro com Serra Grande. Viemos de Itacaré por estrada de terra, lenta, passando por um vilarejo com casas simples. Paramos no mirante para observar antes de descer à praia. Não havia turistas; o mirante se tornou ponto obrigatório”. Uma das memórias mais marcantes de Bruno foi na praia do Sargi: “Alguém nos disse que havia um coqueiro diferente. Chegando lá, vimos um com três copas em um único tronco”, relembra. A viagem também trouxe contato intenso com a natureza: “Acampamos no pé da serra, surfamos e exploramos as praias”.
Na época, Serra Grande tinha pouca infraestrutura em comparação a Itacaré. “Não havia quase nada além de coqueiros e áreas abertas. O povo era receptivo, sempre perguntava de onde vínhamos”, recorda Alves. Após alguns dias, o grupo seguiu para Ilhéus, enfrentando imprevistos: “À noite pegamos uma tempestade forte. Chovia muito e atravessamos rios com a Toyota e a Kombi, um atrás do outro, até chegar à Ilhéus”, descreve.
O fotógrafo José Nazal Pacheco Soub, nascido em Ilhéus em 1956, recorda também como foi a primeira visita a Serra Grande: “Foi em 1970. Um pequeno arrumado de casas, simples, tranquilo. Eu tinha quase 15 anos e meu tio era prefeito de Uruçuca. Nunca me esqueci”. Com o tempo, as visitas se tornaram frequentes, e ele enfrentava a íngreme descida até o povoado: “A ladeira tinha cada barroca. Com chuva, chegar ao Pé de Serra era quase impossível”, lembrando que na época vinha de buggy.
Nos anos 1990, chegar em Serra Grande ainda exigia paciência e resistência. Antônio Roque Silva Pereira, de Santa Inês, funcionário público de Uruçuca e professor de História, lembra bem. “Visitávamos o povoado nos finais de semana, feriados e festas. Nosso ponto de abrigo era na praça Pedro Gomes, sob cabanas de acampamento. Como a estrada entre Ilhéus e Serra Grande não era asfaltada, a viagem demorava”.
Roque também guarda um episódio curioso. Serra Grande já foi distrito de Ilhéus. Por um acordo político e econômico, foi trocada por Banco Central, que na época pertencia a Uruçuca. O distrito vivia o auge do cacau e era um dos polos agrícolas mais produtivos da região. Ilhéus, interessada no ‘ouro marrom’, abriu mão de Serra Grande. “Ninguém imaginava que, anos depois, ela se tornaria um ponto turístico”, lembrando que em 1998, o trecho da BA-001 que liga Ilhéus, Serra Grande e Itacaré foi asfaltado, promovendo mobilidade na região.
Serra Grande tem uma população diversificada, formada majoritariamente por pessoas oriundas de cidades da Bahia, como Jequié, Ipiaú, Ubaitaba, Coaraci, Mutuípe, Jaguaquara, Dário Meira, Feira de Santana, Itabuna, Vitória da Conquista, Salvador, entre outras. Apenas uma parcela nasceu no povoado, já que não havia hospital e os registros de nascimento eram feitos em Ilhéus, devido à ausência de cartório local. A comunidade atualmente também inclui moradores de diversos estados brasileiros e do exterior.

